A inteligência artificial já está presente em muitas criações, desde textos e imagens até músicas e vídeos. Mas quem realmente detém os direitos dessas obras? Na maioria dos países, incluindo o Brasil, a legislação atual só reconhece como autor alguém que seja humano, deixando uma lacuna para as criações geradas ou auxiliadas por IA.
Essa ausência de regras claras gera dúvidas sobre propriedade, uso e remuneração dessas criações. Neste texto, vou mostrar como o direito autoral encara essa situação, quais são os desafios e as discussões em curso sobre a titularidade das obras feitas por máquinas. Você vai entender por que a questão não é simples e por que já é hora de pensar em novas soluções.
O que diz a legislação atual sobre autoria e direitos autorais
Para entender quem realmente detém os direitos sobre uma criação, especialmente numa era em que a inteligência artificial pode produzir conteúdos complexos, é essencial conhecer o que a lei brasileira determina sobre autoria e proteção das obras intelectuais. A legislação atual foi criada num contexto bem diferente do que estamos vivendo agora, e isso explica algumas dificuldades que enfrentamos ao aplicar as regras para criações feitas ou influenciadas por máquinas. Vamos ver como essa regulação funciona hoje no Brasil.
Definição legal de autoria e direitos morais no Brasil
A Lei nº 9.610, de 1998, que rege os direitos autorais no Brasil, é clara em um ponto fundamental: o autor precisa ser uma pessoa física. Isso significa que, juridicamente, uma máquina ou programa de inteligência artificial não pode ser considerado autor de uma obra. Essa exigência está ligada à ideia de criatividade humana e à responsabilidade que o autor tem sobre sua criação.
Além disso, a lei destaca a importância dos direitos morais, que são pessoais e inalienáveis. Esses direitos garantem que o autor tenha:
- Reconhecimento da autoria, mesmo que ceda os direitos econômicos de sua obra;
- Direito de preservar a integridade da obra, impedindo alterações que prejudiquem sua reputação;
- Direito de decidir sobre a publicação ou retirada da obra do mercado, se desejar.
Os direitos morais permanecem com o autor enquanto ele viver e não podem ser vendidos ou transferidos, diferente dos direitos patrimoniais, que cuidam da exploração econômica da obra.
Direitos patrimoniais e sua duração
Quando falamos dos direitos patrimoniais, estamos lidando com o controle sobre o uso da obra para fins econômicos, como reproduzir, distribuir, adaptar ou exibir publicamente. A lei determina que esses direitos têm uma duração limitada: 70 anos contados a partir do ano seguinte à morte do autor.
Durante esse período, o autor ou seus herdeiros têm poder exclusivo para negociar o uso da obra, garantindo uma fonte de renda. Após esse prazo, a obra cai em domínio público e pode ser utilizada livremente por qualquer pessoa, sem necessidade de autorização ou pagamento.
Esse modelo visa proteger a atividade criativa e incentivar a produção cultural ao mesmo tempo em que, no futuro, amplia o acesso do público a esses conteúdos.
Limitações da legislação atual diante da IA
O avanço da inteligência artificial trouxe um desafio grande para um sistema nascido num tempo em que máquinas não criavam com autonomia. A legislação brasileira não prevê explicitamente obras criadas por IA, o que deixa uma lacuna gigante.
Sem essa previsão, surgem dúvidas como:
- Quem detém os direitos sobre uma imagem, texto ou música feitos por um programa?
- Como garantir proteção para o criador original do algoritmo ou para quem usou a IA?
- De que forma a lei protege ou regula o uso das obras geradas por máquinas?
Enquanto a lei só reconhece pessoas como autoras, as criações da IA ficam numa espécie de limbo legal, o que gera insegurança para empresas, artistas e consumidores.
Iniciativas legislativas para regulamentar a IA e direitos autorais
O Brasil já começou a responder a essa questão com o Projeto de Lei (PL) nº 2.338/2023, que estabelece um marco regulatório para o uso da inteligência artificial. Entre seus pontos principais estão:
- A exigência de transparência sobre quais obras protegidas foram usadas para treinar sistemas de IA;
- A possibilidade de os titulares de direitos autorais recusarem o uso de suas criações no treinamento, por meio do direito de “opt out”;
- Mecanismos de remuneração para os autores cujas obras forem usadas nesse processo;
- Responsabilização legal das empresas que explorarem a IA, incluindo multas altas e punições civis.
O projeto também prevê regras para o desenvolvimento ético da IA, classificando sistemas conforme o risco e determinando controles para aplicações que possam impactar direitos e a segurança das pessoas.
Mesmo com avanços importantes, o PL ainda não resolve completamente as questões da autoria direta das máquinas. O debate continua nas esferas políticas, jurídicas e na sociedade, buscando equilibrar inovação tecnológica com o respeito aos direitos dos criadores humanos.
Nesse cenário, fica claro que o direito autoral precisa acompanhar as mudanças tecnológicas para não deixar as criações feitas com inteligência artificial sem proteção ou controle. A legislação brasileira está no caminho, mas ainda há desafios para garantir justiça e segurança para todos os envolvidos nesse novo formato de criação.
Quem pode reivindicar direitos sobre criações feitas por IA?

A criação feita por inteligência artificial traz uma pergunta central que poucos conseguem responder de forma simples: quem realmente detém os direitos sobre essas obras? Diferente das criações tradicionais, onde o autor é uma pessoa física, as obras geradas por IA provocam dúvidas quanto à autoria, especialmente quando envolvem diversas pessoas e tecnologias. Vamos explorar os principais atores que podem buscar esses direitos, considerando as diferentes situações de criação e a interferência humana nas máquinas.
Desenvolvedores de algoritmos como autores
Uma das primeiras figuras que pensamos são os desenvolvedores da IA, os programadores ou empresas que criaram os algoritmos. Afinal, eles investiram tempo, conhecimento e recursos para construir o “cérebro” por trás dessas criações automáticas. Surge a questão: seria justo reconhecer que eles são os autores das obras geradas?
Na prática, a lei atual brasileira e a maioria das legislações no mundo entendem que os desenvolvedores criam ferramentas, não as obras diretamente. Os algoritmos funcionam como instrumentos que respondem a comandos humanos, não são autores com criatividade própria. Isso significa que, mesmo sendo os responsáveis técnicos pela IA, desenvolvedores não têm direito automático sobre as produções geradas sem intervenção humana significativa.
Além disso, a titularidade dos direitos do código ou software em si permanece com eles ou suas empresas, mas isso não se estende automaticamente ao conteúdo criado pela IA. No entanto, em algumas situações, contratos podem garantir à empresa detentora do programa direitos sobre o que a IA produz, especialmente se a criação foi parte de um projeto comercial.
Usuários e a intervenção humana na criação
Aqui está uma peça fundamental desse quebra-cabeça. O usuário que opera a IA — seja por meio de prompts, comandos ou escolhas — pode ser considerado autor? A resposta depende do nível de participação criativa e controle que ele exerce.
Quando uso uma ferramenta de IA para ajudar a escrever um texto, gerar uma imagem ou compor uma música, não é apenas o clique no botão que importa. O valor está na intervenção humana, na maneira de guiar a criação, ajustar detalhes e tomar decisões que agreguem um toque original. Essa intervenção, quando significativa, pode garantir a autoria do usuário, que se torna o agente criativo por trás daquela obra assistida.
Por outro lado, se a interação for mínima ou meramente operacional, como apertar um botão sem nenhum direcionamento criativo, fica difícil reconhecer o usuário como autor. A lei e a jurisprudência tendem a proteger apenas criações em que a contribuição humana passa de mero mecanismo para uma expressão individual.
Para ficar claro, a titularidade do direito autoral costuma ser atribuída à pessoa que “organiza e decide” sobre o conteúdo gerado, mesmo que o resultado tenha sido assistido por IA. É o que fortalece a ideia da IA como uma ferramenta, não um criador autônomo.
Obras criadas autonomamente por IA e domínio público
Algumas IAs podem gerar obras praticamente sozinhas, sem qualquer participação humana além do início do comando. Nesse caso, a situação é bastante clara: essas criações não podem ser protegidas por direitos autorais, porque a lei exige um autor humano para garantir a autoria.
Essas obras caem no domínio público, ou seja, são de uso livre. Qualquer pessoa pode usar, reproduzir ou adaptar essas criações sem precisar pedir autorização ou pagar direitos. Essa é uma consequência direta da ausência de autoria humana.
Essa condição abre espaço para debates sobre se é justo deixar criações complexas e originais serem de uso irrestrito. No entanto, sem uma mudança legislativa específica, a regra vigente é que obras geradas inteiramente por máquinas permanecem sem proteção autoral, dificultando a responsabilidade e a atribuição.
Experiências internacionais que influenciam a discussão
O Brasil não está sozinho nessa encruzilhada. Jurisdições ao redor do mundo já enfrentam a questão e podem nos ajudar a entender para onde o debate caminha.
Nos Estados Unidos, por exemplo, o Escritório de Direitos Autorais (US Copyright Office) já declarou que obras criadas exclusivamente por IA não são protegidas, reforçando que a autoria requer envolvimento humano criativo. Um caso emblemático define que o programa Creativity Machine não pode ser reconhecido como autor.
Na China, há um reconhecimento parcial desses direitos para criações com participação humana assistida por IA, sinalizando um caminho intermediário entre proteção e permissividade.
Na Europa e outros países, as discussões ainda avançam, com iniciativas para atualizar a legislação e estabelecer responsabilidades claras entre criadores humanos, desenvolvedores e usuários. Alguns organismos, como a Organização Mundial da Propriedade Intelectual (OMPI), também pesquisam formas de regular essa nova realidade.
Esses exemplos mostram que o mundo está atento e buscando respostas. Enquanto isso, o papel do diálogo entre legisladores, desenvolvedores, criadores e o público é decisivo para construir regras que respeitem a criatividade humana e reconheçam os limites das máquinas.
Essa visão multifacetada sobre quem pode reivindicar direitos em criações feitas por IA mostra como é necessário considerar cada ator e o grau de participação na obra. A linha entre autor e ferramenta torna-se cada vez mais tênue, exigindo clareza, segurança jurídica e, sem dúvida, regras novas para o cenário que está mudando rápido.
Disputas recentes e impactos para artistas, empresas e cultura

O avanço da inteligência artificial trouxe à tona um cenário complexo no campo dos direitos autorais. Artistas, empresas e o setor cultural têm enfrentado desafios e controvérsias, principalmente relacionados ao uso de obras protegidas para o treinamento de IA. As decisões judiciais, as regulações nacionais e internacionais e as disputas econômicas refletem tensões entre inovação e proteção dos criadores humanos. Nesta seção, vou expor os principais acontecimentos e seus efeitos práticos.
Casos emblemáticos nos Estados Unidos e a doutrina do fair use
Nos Estados Unidos, o conceito de fair use (uso justo) tem sido o pilar para decidir sobre o uso de obras protegidas no treinamento de inteligências artificiais. Em casos importantes, como Bartz v. Anthropic, os tribunais compararam o aprendizado das máquinas ao aprendizado humano. A corte entendeu que treinar um modelo de IA usando obras protegidas, desde que o uso seja transformativo e não comprometa o mercado original, pode se encaixar no fair use.
Por outro lado, em Kadrey v. Meta, a decisão foi mais restritiva, destacando que o uso massivo e quase instantâneo de obras para gerar conteúdos automatizados pode prejudicar autores e o mercado, não configurando fair use. Além disso, a justiça americana tem rejeitado pedidos que reconheçam a autoria de obras totalmente criadas por IA, sustentando que direitos autorais exigem participação humana criativa.
Esse equilíbrio judicial busca evitar abusos e garantir que a máquina funcione como ferramenta, mas abre espaço para debates sobre licenciamento e compensação aos titulares das obras usadas no treinamento.
Regulação europeia e o AI Act
A União Europeia avançou com uma resposta legislativa clara, aprovando o Artificial Intelligence Act (AI Act), o primeiro conjunto abrangente de regras para IA no mundo. Esta lei classifica sistemas de IA conforme o risco que oferecem, impondo obrigações rigorosas para aplicações que podem impactar direitos fundamentais e a segurança do usuário.
Em relação aos direitos autorais, o AI Act obriga transparência sobre os dados usados no treinamento, incluindo obras protegidas. O regulamento estabelece direitos de opt-out para os titulares que não desejam que suas obras sejam usadas, garantindo maior controle sobre a exploração digital.
Além disso, o regulamento prevê rastreabilidade dos dados e a obrigação de informar quando um conteúdo é gerado por IA. A Europa, portanto, aposta em normas claras que favorecem a proteção dos autores, equilibrando inovação tecnológica e respeito aos direitos. A regulação já está em vigor, com fases de implementação até 2027, delineando um caminho mais restrito que o modelo norte-americano baseado em decisões judiciais.
Conflitos no Brasil e necessidade de adaptação legal
O Brasil enfrenta desafios semelhantes, mas ainda carece de uma regulamentação definitiva que contemple as especificidades da IA e seus impactos nos direitos autorais. O uso não autorizado de obras protegidas para treinamento de algoritmos tem gerado controvérsias, além da dúvida sobre quem detém a autoria nas criações assistidas ou geradas por máquinas.
O projeto de lei 2.338/23 avança nesse sentido, propondo:
- Transparência obrigatória sobre o uso de dados protegidos na formação de IA;
- Direito dos autores de optarem por não terem suas obras utilizadas (opt-out);
- Mecanismos de remuneração para os titulares das criações;
- Sanções para quem usar ilegalmente conteúdos protegidos.
Ao mesmo tempo, o cenário brasileiro expõe o descompasso entre a velocidade da tecnologia e a legislação, exigindo que o direito se adapte para garantir segurança e justiça para criadores e empresas que investem em inovação.
Consequências econômicas e culturais das disputas judiciais
As disputas jurídicas e a falta de clareza regulatória impactam não só legalmente, mas também no bolso e na cultura. Indústrias criativas, como música, cinema, artes visuais e literatura, enfrentam riscos com a reprodução não autorizada e o uso massivo de suas obras para alimentar sistemas de IA.
Entre os efeitos mais evidentes estão:
- Diminuição dos incentivos para autores diante da dificuldade de controlar e remunerar o uso de suas produções;
- Riscos de saturação de mercado por conteúdos gerados automaticamente, que podem prejudicar a valorização de obras originais;
- Demandas por transparência nas cadeias de criação para que o público saiba o que é humano e o que é automatizado;
- Pressão por modelos de licenciamento e remuneração que sejam justos, garantindo receita aos autores e permitindo o desenvolvimento tecnológico.
Esse cenário cria uma tensão constante entre proteção e inovação, influenciando diretamente as formas como criadores irão se posicionar e colaborar com tecnologias de IA no futuro próximo.
Em resumo, as disputas recentes mostram que a proteção dos direitos autorais será central para definir quem ganha ou perde na relação entre máquinas e cultura, com impactos que vão além da justiça, chegando ao sustento de toda uma cadeia criativa.
Conclusão
O tema da autoria em criações feitas por inteligência artificial é complexo e está longe de ter respostas simples. A legislação atual reforça que só humanos podem ser autores reconhecidos, mas as máquinas já fazem parte ativa do processo criativo, exigindo adaptações. Encontrar um equilíbrio entre proteger os direitos dos criadores humanos e permitir o uso das novas tecnologias é urgente para garantir justiça.
Sem regras claras, corremos o risco de congelar a inovação ou deixar obras sem proteção, prejudicando tanto artistas quanto mercados culturais e tecnológicos. O caminho passa por uma regulamentação que reconheça as diferentes contribuições, seja do programador, do usuário ou do algoritmo, sem perder o foco na criatividade humana.
Mais do que nunca, é preciso pensar na autoria e na criação como conceitos que podem mudar, acompanhando quem transforma ideias em realidade, seja com mãos ou códigos. Essa reflexão deve nos guiar para um futuro onde talento e tecnologia possam coexistir respeitando direitos e fomentando cultura. Obrigado por acompanhar essa discussão; seu olhar crítico é essencial para o debate continuar vivo e avançar.
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